Os quase 4 milhões de estudantes inscritos no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) de 2023 tiveram como tarefa na prova de domingo, dia 4, elaborar um texto dissertativo-argumentativo que explorasse o tema “Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil”, uma questão de extrema importância que atravessa as estruturas sociais e familiares do país.
Em um tecido social historicamente formado por fios de patriarcado e hierarquia de gênero, o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres ainda vive sob a penumbra da invisibilidade. Desdobrando-se em uma série de tarefas que vão do zelo pelos filhos à atenção aos idosos, esse labor, frequentemente não remunerado, permanece ali, no limbo das obrigações não reconhecidas, impostas e não valorizadas.
A mulher, figura símbolo desse cuidado, vê-se imersa em um paradoxo crônico: essencial para a manutenção da estrutura familiar e, por extensão, da própria sociedade, ela é, no entanto, sistematicamente esquecida nas contas oficiais da economia. É o que se poderia denominar de “trabalho sombra”, realizado em uma dimensão paralela onde a compensação econômica é substituída pelo pressuposto de dever naturalizado.
Para além do espectro familiar, a invisibilidade do trabalho de cuidado feminino ecoa nas paredes de hospitais e asilos, nos berçários e escolas, onde as mulheres, muitas vezes, ocupam a maioria dos postos de trabalho, igualmente subvalorizados. Mesmo com a complexidade e a habilidade técnica exigida nesses ambientes, há um hiato entre a importância social do trabalho e a remuneração e reconhecimento proporcionados.
A pandemia da Covid-19 intensificou o foco sobre esta disparidade. Com o mundo em reclusão, o trabalho de cuidado emergiu como um dos pilares de resistência ao caos, ao mesmo tempo que a carga das mulheres intensificava-se, uma dupla jornada transformada em contínua e exaustiva.
Nesse sentido, pesquisas apontam para uma correlação entre essa sobrecarga e um espectro de problemas de saúde mental e expõem a problemática da carga mental desproporcional imposta às mulheres devido ao desequilíbrio na distribuição das tarefas de cuidado e gestão doméstica.
A pesquisa de Claudia Goldin, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia de 2023, é um exemplo disso. Trata-se de uma viagem profunda nas correntes subjacentes que moldam a presença das mulheres no mercado de trabalho. Goldin é a terceira mulher a receber o Nobel de Economia, e sua voz destaca-se como figura importante na luta contra as disparidades de gênero que ainda tomam conta das estruturas profissionais de nossa sociedade.
Com um olhar que atravessa dois séculos de história americana, Goldin revelou uma jornada feminina no mercado de trabalho que se desdobra não em linha reta, mas sim em uma curva em “U”. A narrativa começa na era agrária, onde mulheres eram uma engrenagem fundamental na máquina econômica familiar. Mas com a Revolução Industrial, essas mesmas mulheres foram empurradas para fora do mercado de trabalho. É apenas com o despertar do século XX, quando a revolução dos serviços necessita da participação das mulheres e a educação feminina avança, que as mulheres retomam seu lugar.
É fundamental, no entanto, destacar o papel transformador da pílula anticoncepcional, que Goldin identifica como um vetor de liberdade e planejamento. Este avanço farmacêutico permitiu às mulheres uma escolha mais consciente e estratégica sobre quando, e se, viveriam a maternidade, abrindo novos caminhos para o planejamento de suas vidas e carreiras.
No entanto, a verdade inescapável que Goldin apresenta é que, apesar dessas mudanças, a maternidade continua a impor barreiras ao avanço profissional das mulheres, um lembrete contundente de que a plena equidade ainda está além do nosso horizonte.
Por conseguinte, iniciativas como as campanhas da ONU Mulheres instigam uma reconfiguração cultural e econômica que traga à luz a contribuição das mulheres. A Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o dia 29 de outubro como o Dia Internacional de Cuidado e Apoio. O ano de 2023 marca a estreia da celebração global desta data, um convite aberto a todos os setores da sociedade para se mobilizarem na sensibilização quanto à importância dos cuidados, reconhecendo-os como alicerce essencial para a conquista da igualdade de gênero, o progresso sustentável e o suporte vital das economias mundiais. Um reconhecimento tangível, que busca romper com a noção arcaica de que o trabalho de cuidado é uma extensão intrínseca do ser mulher e que, por isso, não merece o mesmo estatuto das profissões.
A “invisibilidade” desse trabalho é, portanto, um sintoma de uma enfermidade social mais profunda, um sinal de que o progresso, embora incessante, ainda tem muito caminho a percorrer até que a equidade seja mais do que um ideal, mas uma realidade incontestável.”
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